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O amor incondicional

Intensa dedicação e sentimento de missão não faltam a estas mães de filhos especiais


Pense na maternidade como uma viagem. Você sempre sonhou em ir à Itália. Comprou um guia detalhado do país e roupas específicas. Aprendeu italiano. Planejou a viagem com detalhes. Embarcou no avião. Mas, por algum motivo que você desconhece, a aeronave pousou na África. Você não se preparou para ir à África. Você não sabe nada sobre a África. Você não queria ir à África. As coisas não saíram como planejadas. Ter um filho especial, numa visão muito simplista, é assim. Mas ao invés de reclamar e focar nos pontos negativos de um país desconhecido, as mães especiais entrevistadas para essa reportagem foram estudar e procuraram ajuda para conhecer o novo país em que aterrissaram. Aqui elas contam as dores e os amores de serem mães de filhos especiais. Do momento do diagnóstico até a projeção de futuro, elas têm muito em comum. Amor, dedicação e sentimento de missão não faltam a elas.

Ana Cardoso, mãe da Camila

A primeira gravidez de Ana Maria Cardoso, atualmente com 51 anos, foi bem tranquila. Ela fez todo o pré-natal e trabalhou até a semana anterior ao parto. Na madrugada do dia 29 de novembro de 1989, a bolsa rompeu, mas – sem dor – ela só foi ao hospital quando o dia amanheceu. Mesmo assim, o parto da filha Camila só foi feito às 16 horas. “Os médicos passaram o dia inteiro fazendo exames e ela não nascia. À tarde fizeram muita força e a Camila nasceu”, lembra a mãe. No dia seguinte, ao ver a menina, Ana notou que ela aparentava dificuldades para respirar. Camila foi transferida para um hospital em Ribeirão Preto, onde ficou por uma semana. Mas alguma coisa ainda não estava bem. “Eu notava que a Camila fazia uns movimentos estranhos, mas eu a levava para uma médica daqui e ela me dizia que estava tudo normal”, conta. Quando a menina completou seis meses, Ana a levou novamente para Ribeirão Preto e o médico lhe demonstrou a gravidade da situação: “Você tem um grande problema nas mãos”.

Ana procurou outro médico, que lhe informou o diagnóstico: Síndrome de West*. “Ele ainda me disse que se eu o tivesse procurado logo nas primeiras semanas, talvez o cérebro dela não fosse tão afetado; mas com seis meses, ele já não garantia mais nada”, recorda. A primeira reação da mãe foi achar que aquilo não podia ser verdade. “A gente sempre não acredita. Ao longo da vida dela é que fomos vendo as limitações”, pontua. Segundo a mãe, também houve falta de oxigenação no cérebro na hora do parto, o que agravou o quadro. Hoje, Camila tem 29 anos, não anda, não fala, não se alimenta sozinha, nem se locomove. Mas entende tudo e expressa muito bem o que sente através dos olhos e do sorriso ou do choro. “Eu encarei isso com muita naturalidade. Ela sempre foi uma criança boa, fácil de cuidar. O único trabalho é com o banho e a alimentação”, afirma Ana.

Depois de Camila vieram mais dois filhos: Ana Carolina (23 anos) e Fernando (19). Ela conta que não teve medo deles nascerem especiais. “Eu sabia que não era hereditário”, explica. A condição de Camila não limita a vida da família, pelo contrário. Camila é animada e adora ver o movimento da rua. Em casa, seu programa preferido é assistir ‘Chaves’. “Ela vai à Apae desde os 5 anos e as pessoas são muito solidárias. Essa cadeira em que ela está, nós conseguimos comprar através de uma rifa”, conta Ana. O equipamento, que custou R$ 6 mil há dois anos, já está pequeno para a jovem. A nova cadeira já está orçada em R$ 12 mil. “Estamos vendo ainda como faremos para comprar, talvez façamos um empréstimo dessa vez”, considera a mãe.

Religiosa, Ana acredita que Deus dá a cruz que cada um pode carregar. “Deus escolhe a mãe especial”, finaliza.

* Síndrome de West é um tipo raro de epilepsia e aparece geralmente no primeiro ano de vida. Suas causas ainda são desconhecidas, entretanto, a anoxia é uma possibilidade. A criança apresenta quadro clínico marcado por espasmos e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Seu diagnóstico é realizado por avaliação dos sinais clínicos e alterações eletroencefalográficas.

Eula da Silva, mãe do Gabriel

O diagnóstico de Gabriel Henrique (5 anos) veio quando ele tinha dois anos e meio. A mãe, Eula Paula da Silva (35 anos), estranhou que o menino andava apoiado no guarda-roupa do quarto com o nariz encostado nas portas. Ele também não atendia aos chamados e tampouco reagia a alguns sons. Uma possível deficiência auditiva foi descartada pelo otorrinolaringologista Walmir D’Antonio, e foi através dele que Eula ouviu pela primeira vez a palavra Autismo*. O diagnóstico veio depois, por intermédio de uma junta de profissionais. Gabriel é o segundo filho de Eula. O primeiro, Luiz Gustavo, tinha 12 anos quando ela engravidou do caçula. Eula percebia que, quando bebê, Gabriel reagia diferentemente aos estímulos, mas nunca suspeitou que o menino fosse especial. “Eu amamentei o Luiz Gustavo (hoje com 17 anos) até os dois anos. O Gabriel foi só até os 8 meses, mas ele nunca foi de manter o contato visual. Eu brincava e ele não sorria, não ia no colo de ninguém... já eram sinais do autismo, mas eu só entendi depois que fui estudar o assunto”, conta.

Quanto mais cedo for feito o diagnóstico do autismo, mais fácil e melhor serão o desenvolvimento da criança. Gabriel separa os brinquedos por cor, enfileira as peças, mas começou a falar aos 4 anos. O menino frequentou uma Emei por dois anos e, desde o começo de 2019, vai à Apae. “O desenvolvimento dele é fantástico! Agora, ele já forma frases curtas e dá um jeito de pedir o que quer. Quem convive com o autismo aprende a amar de forma diferente. A gente ama as limitações”, conta Eula. Mas nem sempre ela teve esse entendimento – e quando ouviu o diagnóstico, ficou assustada. “Eu tive minha fase de luto. Toda mãe espera uma criança perfeita. Nos cursos que a gente faz de pré-natal, ninguém ensina a lidar com uma criança especial”, lembra. A mãe de Eula, Jandira de Souza Lopes Silva (auxiliar de enfermagem em um hospital pediátrico de Limeira), foi a força que ela precisava naquele momento. “Minha mãe me disse: ‘o Gabriel é diferente e Deus escolheu você para cuidar dele’”, recorda, emocionada.

Gabriel gosta de brincar com massinhas, de formas geométricas e de andar na praça perto de casa. Suas crises são controladas e a mãe faz de tudo para estimular sua autonomia. “Eu me espelho em casos de sucesso e espero que ele consiga se virar sozinho um dia, que estude, trabalhe, tenha sua família”, fala. Enquanto isso, a conexão entre Eula e Gabriel continua muito forte. Na maioria das vezes é só ela quem entende o que o filho quer. O autista não apresenta características físicas, por isso, Eula conta que já passou por diversas situações constrangedoras. “Às vezes, ele se joga no chão, grita, quer as coisas do jeito dele. Antes, eu evitava sair de casa, tinha vergonha; as pessoas pensavam que era birra, manha, criança mal-educada. Hoje, eu não ligo mais. Minha prioridade é ele”, declara.

* As pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) geralmente apresentam dificuldades com uma ou mais áreas relacionadas às habilidades sociais, comunicação e movimentos estereotipados. As causas do TEA também não são conhecidas e o diagnóstico é concluído por avaliação clínica dos sinais e sintomas.

Fabiana Maiello, mãe da Luiza

Luiza Maiello de Toledo (12 anos) é uma menina esperta. Está no 7º ano do Ensino Fundamental, faz balé, aula de piano e canto – e pensa em fazer culinária. Já fala em morar sozinha um dia, adora maquiagem, sair com as amigas e quer ter um canal do Youtube. Pelo Whatsapp, combina saídas para o cinema e adora ver a casa cheia de gente. Luiza não difere em nada das adolescentes de sua idade, a não ser pelo fato de ser portadora da Síndrome de Down*. Antes de engravidar de Luiza, Fabiana Maiello (hoje com 43 anos) já havia sofrido um aborto espontâneo. Depois de seis meses, ela engravidou de novo e tudo corria bem até o ultrassom realizado na 12ª semana de gestação – o de transluscência nucal, que ajuda a detectar o risco de Síndrome de Down e outras alterações cromossômicas, além de problemas cardíacos no bebê.

Fabiana saiu do consultório médico com o diagnóstico de alteração genética e realizou mais exames para entender a Trissomia 21. O bebê nasceria com Síndrome de Down. “Esse foi um momento muito difícil, de muita preocupação. Eu me perguntava ‘e agora, como vai ser?’. Eu nunca tinha visto um bebê com Síndrome de Down”, conta Fabiana. Foram algumas semanas de choque. “Depois partimos para a ação. Começamos a planejar como seriam os cuidados com ela”, lembra. Como Fabiana trabalhava em São Paulo na época, ela e o marido (Paulo de Toledo) decidiram que a criança nasceria na capital pelos recursos que a cidade poderia oferecer em caso de necessidade.

Quando Luiza nasceu, Fabiana se desligou do trabalho e voltou para Matão. Ao completar 15 dias, a bebê começou a receber estimulação precoce. Formou-se uma rede de apoio com fonoaudióloga, fisioterapeuta e outros profissionais. Com um ano e meio, Luiza foi para a escola. “Nós visitamos a Apae e algumas escolas particulares. A Apae só recebia crianças com mais de 4 anos; algumas escolas não retornaram nosso pedido. A matrícula foi feita numa escola que já conhecíamos e que nos recebeu de braços abertos, com a intenção apenas da Luiza ter interação social, até percebermos que ela estava realmente absorvendo o conteúdo. Isso aumentou ainda mais nossas expectativas. Comemoramos sempre os pequenos passos”, conta a mãe.

Luiza continua na mesma escola e acompanha a turma regular. Sua prova e seus trabalhos são iguais aos dos colegas de sala. “Não cobramos o resultado, cobramos o esforço. Não cobramos o desempenho, cobramos o empenho dela, em tudo”, diz Fabiana. Luiza vai para a aula de manhã e faz tudo sozinha. Se arruma e toma café da manhã. Os pais estimulam a independência e conferem a ela uma autonomia monitorada, afinal, ela tem 12 anos. A conversa sobre a condição de Luiza é aberta em casa, inclusive com o filho mais novo de Fabiana, Pedro (9 anos). Luiza tem consciência de sua Síndrome e fala tranquilamente sobre seu ‘Cromossomo do Amor’. A frase que ela e a mãe têm como lema de vida é ‘Querer é Poder’ – inclusive, ela está estampada na escrivaninha no quarto da menina.

Com vontade de ter a casa cheia de crianças, Fabiana engravidou mais duas vezes – uma antes de Pedro e outra depois. Foram mais dois abortos espontâneos. Pedro é o irmão companheiro e diz que Luiza é engraçada. “As pessoas acham que o Down é agressivo; na verdade, eles potencializam aquilo que recebem. Se recebem carinho, vão dar carinho em dobro. Eles não têm filtro. Não guardam mágoa, rancor. São seres muito evoluídos”, diz Fabiana. “Depois que a Luiza nasceu, a gente foi percebendo que não era tão difícil quanto a gente imaginava. Quando você vive, percebe que se preocupou à toa. Claro que a rotina com ela exige mais paciência, organização e sinergia do casal, que deve agir com cumplicidade. Ter o Paulinho ao meu lado é um privilégio, pois ele é companheiro pra tudo”, ressalta Fabiana.

“Luiza veio como uma missão para nós. Não sei até onde ela vai, mas vamos permitir que busque tudo o que pretenda alcançar; ainda não sabemos o que é possível, por isso, vamos vivendo um dia de cada vez”, conclui a mãe. Juntas, elas adoram fazer massagens nos pés, brincar e ter conversas ‘mãe e filha’.

* A Síndrome de Down, também denominada Trissomia 21, é uma alteração genética causada pela presença integral ou parcial de uma terceira cópia do cromossoma 21. A condição está geralmente associada com atraso no desenvolvimento infantil, feições faciais características e deficiência intelectual leve a moderada.

A visão profissional

 

Ao todo, 6,2% da população brasileira têm algum tipo de deficiência, de acordo com Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), publicada em 2015, que considerou quatro tipos de deficiências: auditiva, visual, física e intelectual. A psicopedagoga Renata Constantino, a terapeuta ocupacional Leila Cestari e a neuropsicóloga Valéria Abreu fazem parte da junta profissional que atua com essas mães especiais. Elas têm as funções tanto de avaliar o desenvolvimento infantil de forma individualizada, levantar hipóteses e encaminhar ao médico para conclusão do diagnóstico, quanto realizar o acolhimento e mostrar as novas possibilidades de atendimento ao caso.

“Trabalhamos para trazer a família à realidade e tirar todas as dúvidas de um jeito funcional”, explica Renata. “Não é fácil para ninguém ouvir que o filho pode ter algum transtorno ou dificuldade, mas a família precisa acreditar e entender a importância do tratamento e da estimulação essencial”, completa Leila. De acordo com as profissionais, este é um momento muito delicado e as reações são variáveis. “É como se a mãe tivesse que substituir o filho que ela idealizou pelo filho em novas e diferentes condições. Ela precisa compreender agora o filho real que ela tem”, explica Valéria.

Esse processo não é fácil e nem rápido. Muitas vezes, a família nega as dificuldades e justifica algum atraso de desenvolvimento dizendo que a criança é muito nova e fará as coisas ao seu tempo. “O importante é a família estar junto com os profissionais, buscando a estimulação e a autonomia dos filhos”, ressalta Renata. Às vezes, as mães recebem o diagnóstico tardiamente e é comum, nos consultórios, as profissionais ouvirem depoimentos emocionantes. “Depois que os pais entendem as limitações, eles conhecem as potencialidades dos filhos e aprendem a ensiná-los; muitas mães nos dizem que é como se tivessem gerado o filho novamente; como se um novo filho, o real, tivesse nascido naquele momento”, relatam as terapeutas.

(Matéria publicada na Revista A Comarca de Dia das Mães - 2019)


Fonte: Ingrid Alves


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